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Se a vida pudesse ser reescrita, Mary Lennox*, 17 anos, se empenharia nesse ofício do qual não gosta. Ler, tudo bem, mas escrever não é com ela. A adolescente, no entanto, daria tudo para reescrever o roteiro da própria vida. E nessa nova história, ela, que está prestes a se tornar mulher e só conheceu a vida nos abrigos que habitou, daria a si mesma a felicidade que merecia num seio familiar.

 

Há muito, ela não acredita mais em adoção. A esperança se transformou em frustração quando foi adotada aos oito anos e não conseguiu se adaptar à família. Negra, adotada por uma família de brancos, sentiu na pele, e da pior maneira, a rejeição. “Não me senti amada. Fugi aos 11 anos”, resumiu. De estatura baixa, fala pueril e olhos fixos no interlocutor, fala com desenvoltura. Não se percebe mentiras em suas palavras, mas dureza. “A vida foi dura comigo. Isso me fez uma pessoa dura, mas nem por isso alguém ruim”.

 

A fuga de Mary durou quase dois anos, tempo em que perambulou pelas ruas e voltou aos abrigos. Depois disso, foi restituída à família adotiva. Depois que fugiu de novo, restou claro que a adoção havia fracassado, e a garota ficou de vez na Casa de Passagem da Zona Norte. A história de Mary ajuda a entender por que cada vez mais infâncias são abandonadas ou esquecidas; adotadas e devolvidas.

 

Um levantamento da reportagem do portalnoar.com identificou, junto ao sistema do Conselho Nacional de Justiça, que perfis como o de Mary, de crianças que passam à adolescência vivendo em abrigos, são cada vez mais frequentes.  Das 21 pessoas disponíveis em Natal para adoção, 13 estão na faixa etária entre 11 e 15 anos e seis têm mais de 15. De 0 a 5 anos, a faixa preferida dos pretendentes a pais, não há crianças disponíveis.

 

A assistente social Shirlene Pereira, que trabalha com crianças em abrigos, confirma as estatísticas: “Os pretendentes a pais querem crianças brancas e recém-nascidas. Não temos esse perfil. Então, as crianças disponíveis crescem aqui, sem saber o que é família, sem saber o que é nada lá fora”.

 

Longe de entender os mecanismos sociológicos, Mary fala com a franqueza que lhe foi ensinada na vida: a adoção não deu certo, porque faltou o principal, amor. Foi esse sentimento que a transformou desde os 15 anos, quando até então era frequente fugir do abrigo. Numa dessas fugas, conheceu um garoto e engravidou. Desde então, prometeu a si mesma que será a mãe cuidadosa que nunca teve. O filho, com três anos de idade, está em outro abrigo. Quando completar 18 anos, em junho, a Justiça só lhe concederá a guarda da criança se ela provar que terá como sustentar a ambos.

 

“É por isso que tenho foco. Estou estudando e quero trabalhar. Quando sair daqui vou ter em mente isso: que não sou só eu. Tem eu e tem meu filho”, comentou. Indagada se pretende voltar ao abrigo que lhe acolheu para visitar os amigos, ela diz que não. “Não tenho amigos. Tenho conhecidos. Não pretendo voltar”, afirmou, quando Collin*, 17 anos, que se mantinha calado até então, falou: “Mas eu pretendo”.

 

Assim como Mary, Collin atingirá a maioridade em junho. Quando sair pretende se instalar em uma academia de MMA e fazer bicos por lá, enquanto estrutura a vida. Para ele, o sonho da adoção também foi interrompido.

 

As drogas desviaram o fluxo natural da vida de Collin, desde cedo. Com os pais envolvidos no tráfico, o adolescente vive em abrigos desde muito pequeno. Ao contrário de Mary, prefere respostas monossilábicas, fala cabisbaixo e esfregando a palma da mão esquerda sobre as costas da mão direita. Há cicatrizes por todo seu corpo moreno, alto e magro. A maior frase que pronunciou ao abrir a boca foi para falar de desilusão:

 

“Não acredito mais em nada”, começou dando uma pausa e reforçando a impaciência nas mãos. Pela primeira vez ergueu a cabeça para fitar bem nos olhos do repórter, que ficou desconcertado com a dor da verdade transmitida nos olhos escuros de Collin: “Eu não conheci esse amor que você tá me perguntando. Não tive amor, não tive família”.

 

A situação do adolescente é tão traumática que ele esconde dos demais sua condição. Na escola, apenas a direção sabe que ele mora em um abrigo. Quando os colegas o chamam para sair, as desculpas afloram. Collin mente para se preservar e fugir da própria realidade: há um misto de raiva e vergonha em ter que admitir que não tem família e que foi esquecido.

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